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O Modernismo Morreu?

O modernismo morreu?

Depoimento de Oscar Lorenzo Fernândez. Especial para Dom Casmurro 26/12/1942.

Depoimento do MAESTRO     LORENZO     FERNANDEZ, participante da “SEMANA DE ARTE MODERNA” — Modernismo não existe — Os palhaços ignorantes Libertou a Arte Brasileira — Floresceram as mediocridades — Possivelmente, depois da Guerra, um Neo-Romantismo na Música.

Especial para Dom Casmurro 26/12/1942

 

Na realização da Semana da Arte Moderna, entre os artistas que se destacaram figurava o músico Lorenzo Fernandez. Vila Lobos, que nega ter participado efetivamente do movimento modernista, reconhece em Lorenzo Fernandez uma das figuras de valor da música brasileira e alegrou-se, mesmo, publicamente, por verificar que está compondo ponteios em vez das sonatinas lançadas à moda em 1922. Aliás, a posição de que desfruta no cenário da cultura artística é das mais invejáveis. Compositor de ideias renovadoras, busca sempre novos aspectos para a sua sensibilidade criadora. E está entre os que merecem a admiração dos entendidos como o aplauso do grande público.

Quisemos ouvir a palavra de Lorenzo Fernandez neste inquérito sobre o modernismo. O artista atendeu nosso desejo. E, ao lançarmos a pergunta – O Modernismo morreu?, redarguiu, imediatamente:


MODERNISMO NÃO EXISTE

— Bem, essa pergunta é difícil. Não se pode responder assim sem mais nem menos. Precisamos distinguir o que se entende por modernismo.

Quer saber a verdade?

Modernismo não existe. Dizer que somos Modernistas é bobagem. O que somos, na realidade, é atuais. Isso sim. Os artistas de hoje são atuais: — e tem obrigação de sê-lo. Vivemos a nossa época. No mundo de hoje, mundo de ação intensa, de ritmos vertiginosos, de guerras totais, menos que nunca se admite gente fora da própria época. Os saudosistas e os passadistas estão fadados à morte por definhamento. Fazer fincapé, em qualquer terreno, é um perfeito absurdo. É inadmissível. Sobretudo no terreno da Arte.

 

BACH E BEETHOVEN, INCOMPREENDIDOS

 

O maestro atende a uma pessoa do Conservatório Brasileiro de Música e prossegue:

 

— É, de resto… veja:

Bach foi moderno e incompreendido na sua época, Beethoven um inovador. Wagner um revolucionário, Debussy passou por maluco, e Stravinski ainda passa… E o mais curioso é que os argumentos empregados contra eles, por uns pobres diabos dos quais ninguém se lembra depois, são profundamente semelhantes aos usados contra os nossos modernos.

O artista tem obrigação de viver sua época, e, si verdadeiramente criador, está sempre tentando ir além do que se fez, aproximar-se mais da perfeição, isto é, tentando inovar. Vejamos na música: ela é incontestavelmente, de todas as artes, a de técnica mais difícil, mais séria, e menos acessível. Por isso, muitíssimas inovações são de natureza muito particular, quase impossíveis de serem percebidas pelos leigos. Outras são muito sutis. Só os grandes passos são sentidos — e surge logo uma terrível reação.

E dura até que o público, evoluindo, compreende a beleza da obra — e aceita. Por exemplo, lembro-me de uma caricatura de um jornal americano dos fins do século passado: partituras de Wagner tendo escrito: para serem executadas em 1995…

Vê? A luta é a mesma, sempre. Não há remédio. O público continuará sempre resistindo, e os verdadeiros artistas inovando.

 

OS PALHAÇOS E A LIBERDADE PARA O ARTISTA

 

O nosso depoente aborda um ponto muito controvertido:

 

Já se viu que o modernismo não existe. Isto não quer dizer que se possam fazer todos os cabotinismos e todas as maluquices em nome da Arte atual. Os que as fazem, não são artistas — são palhaços aproveitadores. É preciso muita seriedade. Não se deve brincar com a arte. Esses tolos que fazem umas coisas sem técnica, nem método, nem forma, e dizem que é modernismo, são tudo o que quiserem, menos artistas. A primeira necessidade do artista atual é ser um perfeito mestre da técnica, conhecer tudo o que se fez. Só então poderá dar verdadeiramente um passo para a frente. O que se chama por aí de modernismo, foi o movimento de democratização da arte. Nós demos o brado de liberdade. Acabar com todos os ídolos, as tiranias, no campo da arte. As formas antiquadas, os hábitos adquiridos, as monarquias artísticas nos sufocavam. A arte moderna, como se entende vulgarmente, é isso: Liberdade para o artista!

 

E numa afirmação categórica:

 

— A arte atual é uma perfeita democracia.

 

OS DESCABELADOS NÃO FICARÃO

 

Perguntamos se essa liberdade não era quase sempre, agora, mal compreendida. O compositor não retarda a resposta:

 

— Claro, liberdade não é poder matar, saquear, roubar. O mesmo em Arte. E
nela há, também, juízes. O primeiro, é a consciência do verdadeiro artista. O segundo, infalível, é o futuro. Muita gente (e a arte menos atacada, exatamente pela dificuldade da técnica, é a música) muita gente, em nome de Arte Moderna, fez toda sorte de blague, cabotismos, coisas descabeladas pour epater les bourgeois… Isso não é sério.  E esses não ficarão. É o castigo… Mesmo assim, não deixam de ter uma grande função: destroem os ídolos. Ajudam, abrindo caminho para os outros…

 

LIBERTOU A ARTE BRASILEIRA

 

O jornalista interroga sobre a contribuição do movimento modernista à inteligência nacional e ouve o conceito do artista:

Nós vivíamos numa dependência absoluta da arte europeia. Quase escravizados. As correntes atuais trouxeram grandes vantagens. Despertaram a consciência da Arte Nacional.

Libertaram-nos. Libertaram a arte brasileira da influência enorme, sufocante e retardatária, das correntes europeias. Veja na música: os nossos compositores fazendo tarantelas…

Hoje, é o contrário que acontece. Nossa música, voltada para as raízes do país, o folclore, cheia da nossa força nativa, passou de influenciada a dominadora. Não é uma vantagem?

 

MAIOR FLORESCIMENTO DE MEDIOCRIDADE

 

A palestra prossegue no mesmo tom de amável troca de ideias. Teria o modernismo permitido maior florescimento de mediocridade?

 

— Permitiu. Não tenho medo de afirmar — diz o maestro. Apesar de que as mediocridades sempre foram muitas… Mas como o modernismo surgiu com uma feição exótica (na realidade não o é) aconteceu isso: muita gente pensou que arte moderna, com ser livre e independente, não precisava de técnica, de esforço, de estudo… E, em resultado, já se sabe: toca a fazer livros e compor músicas assim como de brincadeira.

Ora, tenhamos paciência: a arte pode ser livre e democrática. Mas não dispensa o artista. O verdadeiro artista…

 

A POSIÇÃO EM FACE DO PASSADO 

 

Chegamos a um terreno fértil em controvérsias:

— Qual a posição do modernismo em face das escolas antecedentes?

Lorenzo Fernandez está à vontade:

 

— Não de pode dizer assim sem mais nem menos. Em parte, já está respondido pela primeira pergunta, no começo. Mas, ainda estamos muito dentro da questão, para podermos fazer um apanhado geral. No meio de uma rua, um indivíduo, por mais boa vontade que tenha, não pode ver o panorama de uma cidade…

Entretanto, posso afirmar, sem susto, que a Arte Nova é vida. É livre — e, por isso, muito mais humana. Acabou com os convencionalismos.

Procura a perfeição intuitivamente — não mediante formas preestabelecidas. Não chega isso?…

 

APÓS-GUERRA: TALVEZ UM NÉO-ROMANTISMO

 

Quase para deixar o maestro Lorenzo Fernandez entregue às suas ocupações habituais, oferecemos a última pergunta:

 

— Acha que a guerra influirá sensivelmente no panorama artístico e literário ou permanecerá o atual estado de coisas?

 

Lorenzo Fernandez despede-se sorridente:

 

— Não sou bom adivinho. Mas sou muito otimista. Creio que virá um cansaço do caos. Cansaço de um certo decadentismo, que se nota, sobretudo, nas correntes europeias. Com a vitória da liberdade — sim, porque eu creio fanaticamente na vitória da liberdade, o mundo procurará reconstruir-se em moldes melhores. Virá, provavelmente, uma reação de mocidade. Na música, talvez um neoclassicismo,  evoluindo para um neo-romantismo. Procuraremos ser mais humanos — e creio que o intelectualismo, o cerebralismo artístico cederão ao sentimento, à expressão mais direta da alma humana. Não sou literato, creio entretanto que os Estados Unidos estão destinados a uma grande influência na literatura de após guerra, por muitas razões já bem conhecidas. Mas tenho muita fé dos nossos poetas, e nos nossos músicos. Talvez seja puxar a braza para a minha sardinha — mas eu tenho mesmo muita fé na música brasileira.