Vida

LORENZO FERNÂNDEZ: vida e obra

Maria Silva e Silvério
(jornalista, antropóloga e bisneta de Oscar Lorenzo Fernândez)

 

O maestro Oscar Lorenzo Fernândez (1897-1948) é um dos músicos brasileiros mais destacados de sua geração, autor de um dos legados mais sólidos e expressivos do modernismo nacional. Homem de ideias firmes e nacionalista convicto, é um dos responsáveis pela consolidação do nacionalismo musical no Brasil ao lado de Villa-Lobos, Luciano Gallet, Francisco Mignone, Camargo Guarnieri e Mário de Andrade.

Filho de Amália Lorenzo e Don Cassiano Fernândez y Alvarez, ambos de nacionalidade espanhola, nasceu no Rio de Janeiro a 4 de novembro de 1897. Cresceu em um ambiente propício ao desenvolvimento de interesses artísticos, já que seus pais organizavam saraus musicais em casa. Aprendeu a tocar piano de ouvido quando tinha 15 anos e, pouco tempo depois, recebeu os primeiros ensinamentos teóricos de sua irmã, Amália Fernândez, aluna de Henrique Oswald.

Apesar disto, estava designado pelos pais a estudar medicina. Por ironia do destino, foi surpreendido por um distúrbio nervoso antes de iniciar o curso. O médico da família recomendou um período de repouso e sugeriu que o jovem relaxasse através da música. Lorenzo Fernândez passou os dias tocando e compondo. A partir de então, foi impossível renegar seu impulso artístico e criador. O compositor de personalidade singular e independência estética começou a revelar-se.

Em 1917, recebe apoio de familiares e amigos para ingressar no Instituto Nacional de Música (INM), hoje incorporado à Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Três anos mais tarde, faz sua estreia como intérprete e compositor diante do público e funda a Sociedade de Cultura Musical do Rio de Janeiro, instituição da qual foi subsecretário.

Em 1922, conquista os primeiros prêmios de sua carreira: três primeiros lugares no concurso nacional de composição promovido pela Sociedade de Cultura Musical. Participa ativamente como assistente da Semana de Arte Moderna em São Paulo e fortalece sua amizade com os escritores Mário de Andrade e Graça Aranha. No mesmo ano, casa-se com Irene Soto Lorenzo Fernândez, mãe de seus dois únicos filhos: Oscar Soto Lorenzo Fernândez e Marina Helena Lorenzo Fernândez Silva.

No INM, Lorenzo Fernândez estuda com os mais renomados mestres: J. Octaviano (teoria e piano); Frederico Nascimento (harmonia); Henrique Oswald (aperfeiçoamento de piano) e Francisco Braga (composição, contraponto e fuga). O aluno esteve sempre à altura dos mestres a ponto de, em 1923, substituir Nascimento na cátedra de Harmonia quando tinha apenas 25 anos. Estabelece contato com Alberto Nepomuceno, conhecido como o patriarca do nacionalismo musical brasileiro. A relação entre ambos é fundamental para a estética nativista que norteia muitas das obras de Lorenzo Fernândez.

Em 1924, compõe o Trio Brasileiro para piano, violino e violoncelo, ainda hoje uma de suas obras mais aplaudidas e vencedora do 1º Prêmio do Concurso Internacional da Sociedade de Cultura Musical do Rio de Janeiro (1925). Nas palavras de Mário de Andrade, “esta obra marca uma data na evolução musical brasileira e revela um artista em plena posse de sua personalidade poderosa”.

A personalidade de Lorenzo Fernândez é destacada por musicólogos, historiadores e artistas da época como intrinsecamente ligada à sua obra. Homem com elevada cultura humanística e literária, caráter inquestionável, extremamente sensível, afável e emotivo, ganhava amigos ao primeiro contato. É muitas vezes considerado um dos mestres mais amados e simpáticos do seu tempo. O reflexo de seu caráter em suas composições explica a originalidade e integridade de sua música, que nunca se curvou aos ditames da moda para agradar aos ouvintes.

Um de seus grandes sucessos, Toada para Você, com letra de Mário de Andrade, é publicado em 1928. A canção tem as primeiras tiragens de mil partituras esgotadas em poucas semanas. O êxito é tamanho que a canção transforma-se em uma espécie de ideal do lied brasileiro. Para o musicólogo Vasco Mariz, “estamos perante uma das mais perfeitas realizações do lied nacional, tanto pela brasilidade filtrada quanto pela fusão ideal do texto com a música. O acompanhamento e a linha melódica unem-se num comentário felicíssimo, espontâneo, dos versos mulatos, cheios de dengues, do Papa do modernismo.”

Ainda em 1928, Lorenzo Fernândez escreve Imbapara, composição sinfônica inspirada no poema ameríndio de Basílio Magalhães e com temas musicais autênticos retirados dos fonogramas gravados por Roquete Pinto. A primeira audição orquestral foi dirigida por Francisco Braga e, em junho de 1937, Imbapara estreia no Teatro Municipal do Rio de Janeiro como espetáculo coreográfico encenado. A primeira apresentação é regida pelo próprio compositor e conta com a participação da orquestra e do corpo de baile do Teatro Municipal, com coreografia de Maria Olenewa. De acordo com o musicólogo Renato Almeida, trata-se de “uma das mais vigorosas partituras orquestrais” brasileiras.

Pouco tempo depois, o compositor se consagra definitivamente. A suite sinfônica em três partes Reisado do Pastoreio, que contém a peça Batuque, tem sua estreia mundial pela Orquestra do Instituto Nacional de Música sob a regência de Francisco Braga. O Batuque, que tem grande efeito pela vitalidade rítmica e orquestração exuberante, é responsável pela divulgação do nome de Lorenzo Fernândez no panorama internacional e é uma das peças de compositor brasileiro mais executadas no exterior. Já foi gravada e interpretada por regentes como Serge Koussevitzky; Carlos Chavez; Eleazar de Carvalho; Isaak Karabtchevsky; Gustavo Dudamel; Saul Caston com a Sinfônica da Filadélfia; Arturo Toscanini com a NBC de Nova Iorque; Leonard Bernstein com a Filarmônica de Nova Iorque; Eleazar de Carvalho com a Orquestra Sinfônica Brasileira; Edoardo de Guarnieri com a Sinfônica Municipal de São Paulo; Claudio Santoro com a Sinfônica do Teatro Nacional de Brasília e Roberto Minczuk com a Sinfônica do Estado de São Paulo.

Outro grande feito de Lorenzo Fernândez é a fundação do Conservatório Brasileiro de Música em 1936, no Rio de Janeiro. A instituição é declarada como de utilidade pública e rapidamente tem seus cursos superiores equiparados aos da Escola Nacional de Música. Alguns meses após a fundação do Conservatório, o maestro recebe dos docentes e funcionários uma carta de saudação escrita pelo professor de História da Música do Instituto Nacional de Música, Luiz Heitor Corrêa de Azevedo, cujo trecho destaca-se:

Raras vezes, no compositor, a arte está em harmonia com o homem… Em Lorenzo Fernândez dá-se justamente o contrário; a arte é uma projeção do homem, está em íntima concordância com a personalidade do artista. Suas obras são monumentos de grande elevação, de imaculada pureza artística, de profunda sinceridade, de incorruptível consciência, de generosa compreensão humana, de admirável compreensão nacional, de intenso lirismo e de cordial acessibilidade. Eis o retrato do homem.

A obra de Lorenzo Fernândez pode ser divida em três momentos, embora suas características se entrelacem em cada um deles. O primeiro (1918-1922) é caracterizado pela influência do impressionismo francês, harmonia complexa e emprego da bitonalidade. O segundo (1923-1938) é marcado pelo aproveitamento sistemático do folclore na produção camerística, orquestral e pianística. Nesta fase, o compositor focaliza os populários negro, ameríndio e caboclo, e raramente harmoniza temas populares. A preferência é pela utilização de constâncias melódicas, contrapontísticas, rítmicas e harmônicas inspiradas pelo período da música nacionalista baseado num contraponto cerrado e amplo colorido instrumental. Por fim (1939-1948), uma fase universalista, ainda que implicitamente nativista, muito introspectiva e bastante amargurada. É caracterizada pela unidade temática, exclusão de ornamentos e uma maior utilização da polirritmia e da politonalidade.

Suas composições caracterizam-se pela qualidade, fluência da inspiração, refinamento e ciência artesanal. Dentre os seus principais trabalhos está Malazarte, drama lírico em quatro atos com texto de Graça Aranha. Na opinião do musicólogo Luiz Heitor Corrêa de Azevedo trata-se “de uma manifestação de arte nacionalista, a primeira que encontramos, no domínio do teatro lírico brasileiro, no qual muitas vezes os argumentos, mas nunca a música, haviam pedido inspiração ao povo e às tradições do país.” A ópera conquistou o Prêmio Graça Aranha em 1940.

No setor orquestral, Lorenzo Fernândez compôs duas Sinfonias, Suite Sinfônica e Variações Sinfônicas para piano e orquestra (esta com 15 variações sobre temas folclóricos), 1º Concerto para piano e orquestra em Fá sustenido menor, 1º Concerto para violino e orquestra em Lá maior. Na música de câmera destacam-se o 1º e 2º Quarteto de Cordas e as Invenções Seresteiras, além da Suite para Quinteto de Instrumentos de Sopro. Outro trabalho importante é o balé Amaya, escrito integralmente na escala pentatônica e com enredo do próprio compositor.

São inúmeras as obras para piano solo, como Valsa Suburbana, Suites Brasileiras 1 e 2, 3ª Suite Brasileira (Toada, Seresta e Jongo), Sonata Breve, Três Estudos em Forma de Sonatina e Historietas Maravilhosas, dentre outras. O maestro também é conhecido por diversas composições dedicadas ao mundo infantil e ao ensino do piano, tais como Bonecas – Suite Infantil, Suite das Cinco Notas, Minhas Férias, Pequena Suite Infantil e outras. Várias de suas obras para piano foram gravadas por nomes como Arnaldo Estrela, Cristina Ortiz, Arnaldo Cohen e Nelson Freire. Destaca-se a gravação da obra completa por Miguel Proença.

A obra lírica é composta por 48 canções, a maior parte com inspirações seresteiras. Muitos poemas musicados são de autoria do próprio compositor, bem como de 14 membros da Academia Brasileira de Letras. Sobressaem-se: Toada para Você (letra de Mário de Andrade), Essa Nêga Fulô (letra de Jorge de Lima); Noturno (Eduardo Tourinho); Canção do Mar (Manoel Bandeira); Berceuse da Onda (Cecília Meireles); A Sombra Suave (Tasso Silveira); Noite de Junho (Ronald de Carvalho); Mãos Frias (Adelmar Tavares); Meu Coração (J. B. de Mello e Souza); Canção Sertaneja (Eurico Góes); e Canção do Violeiro (Castro Alves). A cantora lírica Maria Lúcia Godoy e a pianista Talitha Peres reuniram em CD parte da obra para canto.

Lorenzo Fernândez tinha uma capacidade extraordinária para musicar poemas e letras. Ao estudar aspectos da canção brasileira e da união da palavra com a música, Mário de Andrade ressaltou inúmeros erros de compositores não atentos à realidade fonética das palavras. O escritor publicou nos Anais do Primeiro Congresso de Língua Nacional Falada e Cantada a seguinte conclusão: “Lorenzo é o único de nossos compositores que conhece metrificação poética e sabe que a fonética existe. Demonstra ter um conhecimento mais íntimo da língua e respeita-a em suas fatalidades e belezas de dicção.”

O compositor também se distingue por seu espírito livre e mente aberta, à frente de seu tempo. Amante exagerado da natureza, não praticava nenhuma religião, embora se sentisse um cristão por sensibilidade. Tinha uma atitude estética em relação aos valores religiosos e considerava Jesus o poeta dos poetas. Com uma visão independente, jamais filiou-se a partidos políticos. Tinha o hábito de fazer anotações em seus livros e escreveu a seguinte reflexão no exemplar de Tolerância, do filósofo Voltaire:

“Por que não poderemos nós pagãos e nossos vizinhos cristãos viver em paz e Harmonia? Levantamos os olhos e olhamos as mesmas estrelas, somos passagem deste mesmo planeta e moramos sobre o mesmo céu. Que importância tem, se os indivíduos procuram a verdade por caminhos diferentes? O enigma da existência é muito grande para que só exista um caminho que conduza a uma resposta.”

Com este espírito, Lorenzo Fernândez destacou-se não apenas como compositor, regente e pianista, mas também como professor, musicólogo, educador e poeta. Foi responsável por diversas realizações de ação coletiva para aprimorar o meio musical brasileiro. Em 1930, fundou a revista Ilustração Musical, na qual publicou dois artigos em forma de estatuto: Bases para a Organização da Música no Brasil e O Canto Coral nas Escolas. Os textos sugeriam às autoridades culturais um vasto plano de mudanças e incrementos para um melhor aproveitamento do ensino musical no país.

Na visão do crítico e musicólogo Sérgio Nepomuceno Alvim Corrêa, é injusto não dar, a priori, os méritos a Lorenzo Fernândez pela reforma ocorrida no ensino musical encabeçada por Villa-Lobos. Este seria o autor pragmático e aquele seria o mentor teórico, afirma o musicólogo. Por diversas vezes, Lorenzo Fernândez foi convidado por Villa-Lobos para substituí-lo na direção do Conservatório de Canto Orfeônico, uma das várias instituições na qual foi professor e exerceu cargos de direção.

Em 1938, é escolhido pelo governo brasileiro para representar o país como compositor, regente e conferencista no Festival Interamericano de Música. Lorenzo Fernândez passa sete meses consecutivos viajando por diversos países da América Latina. O maestro considera a turnê um dos episódios mais importantes de sua vida artística. A obra Batuque conquista por unanimidade o Prêmio do IV Centenário de Fundação da Cidade de Bogotá, instituído pela New Music Association of California. Já a Sociedade Pan Americana de Nova Iorque concede-lhe o prêmio de melhor composição. O músico é convidado pelo presidente da Colômbia para compor o Himno de la Raza (Hino à Raça) para coro e orquestra. A Academia de Música de Nova Iorque comissiona Lorenzo Fernândez para organizar e revisar a obra A Melhor Música do Mundo, publicada nos Estados Unidos em 12 volumes. Também é solicitado para colaborar ativamente com o Grande Dicionário de Música editado em Barcelona.

O maestro ocupa a cadeira 18 da Academia Brasileira de Música, instituição que ajudou a fundar em 1945. É admirado por ser um dos poucos grandes artistas da época a não ter estudado ou se aperfeiçoado no exterior. Tudo que aprendeu foi em solo brasileiro. Seu prestígio era tanto que um levantamento feito dos programas de concertos no Rio de Janeiro, em 1947, apontava-o como o compositor mais frequentemente interpretado no momento. Nas palavras de Villa-Lobos, o amigo é “um homem perfeito como artista e um artista que tem o direito de viver com uma perfeição relativa porque é senhor de um nobre caráter, moral e artístico, e de uma inteligência filosófica e musical, culta e segura, que o fazem certamente um dos sólidos alicerces da música erudita brasileira.”

Aos 50 anos, a figura de Lorenzo Fernândez desenhava-se irradiante no tablado de regência do salão Leopoldo Miguez por ocasião do concerto oficial do centenário da Escola Nacional de Música. O compositor é ovacionado de pé e carregado pela plateia, vivenciando uma das maiores manifestações públicas que um músico erudito já havia recebido dos cariocas. Menos de 24 horas depois, no entanto, o maestro deixa a batuta cair. É encontrado morto em sua cama na manhã de 27 de agosto de 1948.

Coincidência ou não, Lorenzo Fernândez havia assinalado em um dos livros de medicina a causa de sua morte: “enfarto do miocárdio, sem sofrimento”. O coração do mestre, que já dava sinais de cansaço há alguns anos, não suportou o triunfo do dia anterior. Viveu os quatro últimos anos de sua vida com Helena Abud.

A filha Marina Helena Lorenzo Fernândez Silva, fruto do casamento de 20 anos com Irene Soto Lorenzo Fernândez, é a principal continuadora das ideias e realizações do pai. Em 1960, funda o Conservatório Estadual de Música Lorenzo Fernândez, em Montes Claros (MG) e em 1987 a Faculdade de Educação Artística da Fundação Norte-Mineira do Ensino Superior (FUNM), hoje Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes). Posteriormente preside por 20 anos o Conservatório Brasileiro de Música (RJ), fundado pelo maestro Lorenzo Fernândez. É de Marina Helena Lorenzo Fernândez Silva a idealização do Projeto Lorenzo Fernândez Digital com o objetivo de tornar acessível todo o legado artístico do seu pai.