Arquivo

Entrevista à Rádio MEC

Entrevista concedida pelo Maestro Lorenzo Fernândez à Rádio Ministério da Educação, a 3 de novembro de 1947, transmitida às 22:30h

P Desejaria, maestro Lorenzo Fernandez, que evocasse para nossos ouvintes os episódios mais salientes da sua vida artística.
R

 

A vida de um artista é sempre um rico manancial dos mais variados episódios; alguns, de caráter íntimo e pessoal, outros da reação do artista com o meio social; muitos da sua vida de professor e os maiores e, possivelmente, mais belos, os do compositor.

Qual deles o mais saliente? Talvez a grande viagem que fiz através da América Latina, realizando concertos sinfônicos por diversos países ibero-americanos e levando a todos eles, a mensagem do Brasil, na ardente vibração da nossa música.

Essa viagem constituiu um grande triunfo para a música brasileira. Foi, no entanto, uma árdua prova para a minha sensibilidade, pois em todos os países irmãos assal­tava-me sempre a inquietante pergunta: Como receberão, eles a nossa música?

O calor e o entusiasmo espontâneo do público exigiu fossem algumas músicas repetidas três vezes, como aconteceu em Cuba e no Chile, compensando assim, sobejamente, todos os sacrifícios.

Talvez a estréia do meu drama lírico Malazarte na temporada oficial do Teatro Municipal, em setembro de 1941.

Confesso que dessa vez tive certo receio do público, pois uma obra que se apresentava com danças de pastorinhas, mo­dinhas e batuques, iria provavelmente escandalizar os pacatos e inofensivos frequentadores da ópera, geralmente tão infensos às novidades e só as aceitando, com relutância, quando trazem rótulo estrangeiro.

P No início de sua carreira, acha que sofreu a influência de algum compositor?
R

 

Infeliz do compositor que, nos albores da sua car­reira, não admira profundamente algum grande mestre e não procura estudar com entusiasmo a sua obra. Na juventude as impressões recebidas são muito fortes e o espírito ainda não está amadurecido para permitir a livre manifestação da personalidade.

Musicólogos e críticos poderão, melhor do que o autor, sentir essas influências. O compositor, colocado den­tro da sua própria obra, não tem suficiente ângulo visual, nem perspectivas para auto-analisar-se.

Na infância meu ídolo foi Beethoven e na juventude entusiasmei-me por Wagner. Ao concluir os estudos, na Escola Nacional de Música, era Debussy que me fascinava com a sua nova mensagem misteriosa e sutil.

Depois comecei a sentir dentro de mim as canções da nossa terra, os seus anseios bárbaros, por vezes, o seu lirismo nostálgico.

Creio que foi nessa época que me encontrei, ao procurar fixar no pentagrama a minha integração com a terra e com o meio ambiente.

Agora, amadurecido, virá, naturalmente, a superação. Meus pensamentos procuram expandir-se, universalizando-se e a imensa figura de Johann Sebastian Bach surge no horizonte, como um farol, guiando o meu frágil barco veleiro no tempestuo­so mar da arte moderna.

P  Gostaria que nos falasse das suas composições mais recentes e dos seus futuros projetos.
R

 

Das minhas composições mais recentes destaco, pelas suas proporções, a lª Sinfonia, o 2o. Quarteto, a 2ª Sinfonia e a Sonata Breve, todas elas escritas de 1945 a 1947. Ao com­por as Invenções seresteiras, a duas vozes, para clarineta e fagote e as Invenções seresteiras, a três vozes, para flauta, clarineta e fagote, todas de 1944, pareço despedir-me dessa fase de intensa fixação dos elementos nacionais, para iniciar um novo ciclo em que procuro cristalizar esses elementos, conduzindo a minha música para um plano mais universal, sem per­der, contudo, essa essência de brasilidade da qual não posso desprender-me, de tal modo me sinto integrado à terra em que nasci.

Tanto no 2o. Quarteto como nas duas sinfonias e na Sonata Breve procuro, dentro da lógica e clareza tão necessá­rias ao meu espírito, libertar-me inteiramente de modas e escolas e de qualquer sistematização de processos melódicos, rit­micos ou harmônicos.

Analisar tecnicamente essas obras seria inútil e fastidioso. Penso, aliás, que a melhor maneira de compreender a música é ouvindo-a.

Não gosto de falar do futuro, nem dos meus projetos nesse tão incerto e problemático tempo que tanto pode ser um Andante tranqüilo, um Lento sombrio ou um Allegro molto agitado, cortado bruscamente por uma súbita Cadência interrompi­da.

Tenho, naturalmente, como todo o efêmero ser vivente, muitos e muitos projetos, a maioria dos quais não chega a realizar-se. Por isso não gosto de falar em coisas incertas. Há um conhecido provérbio que diz: “O homem propõe e Deus dispõe” e eu sugiro, a bem da verdade, que seja mudado para este: “O homem propõe, a mulher se interpõe e … Deus dispõe”.

P O que pensa do movimento musical da atualidade?
R

 

Minha prezada interlocutora, quanto mais simples são as perguntas mais complicadas as respostas. Essa inocente pergunta, atirada assim como quem joga uma … bombinha atômica, deixa-me completamente aturdido.

A arte moderna, melhor direi, a atual, e, forçosamen­te, um reflexo do nosso mundo de hoje. Agora sou eu que lhe pergunta: Que pensa do mundo atual? Ah! Também ficou aturdida, não é?

Se eu tivesse o gosto profético dos israelitas, diria que estamos no século da “Torre de Babel”. Todo mundo fala e ninguém se entende. E muitos já não falam: gritam, insultam e vociferam. Isso lembra-me um Epigrama que escrevi há alguns anos (qual o brasileiro que não cometeu esse pecado alguma vez na vida e que terá a coragem de atirar-me a primeira pedra?) . Intitulava-se, justamente, Babel e dizia assim:

Na floresta encantada das árvores
Os papagaios gritam.
Gritam em todos os tons…
Gritam e não se entendem…

Também ouço gritos
Em todos os tons
E ninguém se entende
Na floresta encantada dos homens.

Eis o panorama da música atual.

Todos gritam e ninguém se entende. Creio, no entanto, que apesar de todos os esforços em contrário, a música sobre­virá, cada vez mais bela e mais forte, pois é a única arte que, por essência, subjetiva, indefinível e abstrata, está livre das opressoras teorias estatais tão em moda hoje em dia.

O movimento musical, como criação, é bastante caótico. Talvez seja isso uma prova de vitalidade. Só as geraçoes futuras poderão responder com segurança.

O movimento musical, como divulgação, está no século de ouro. Nunca o povo participou tão diretamente da divina música.

É a grande conquista da ciência: o disco, que consegue o milagre de aprisionar não só a música, mas a própria inter­pretação do artista, essa coisa tão fugidia e que outrora se perdia para sempre, pondo a nossa disposição, na hora deseja­da, a música desejada; e o rádio, esse maravilhoso veículo de difusão leva às mais solitárias e longínquas regiões do nosso mísero planeta a divina música, que consola e eleva o pensamento humano.