Histórico

Marcos Filho
(compositor, pesquisador musical e professor no Departamento de Música da Universidade Federal de São João del-Rei, Minas Gerais, Brasil)

O Projeto Lorenzo Fernândez Digital nasceu do sonho de ver divulgada nacional e internacionalmente a obra de um dos ícones do nacionalismo musical brasileiro, o compositor Oscar Lorenzo Fernândez (1897-1948).

Lorenzo Fernândez nos deixou no auge da sua capacidade produtiva, num momento em que sua carreira apontava para novos rumos estéticos e, consequentemente, para a ampla divulgação de sua obra. Antes de falecer, em agosto de 1948, vinha se dedicando à composição de obras para orquestra e de câmara, tais como as Invenções Seresteiras (1944), as Sinfonias no. 1 (1945) e no. 2 (1946), os concertos para solista e orquestra e as Variações Sinfônicas para piano e orquestra (1948, provavelmente sua última composição). É deste período também sua produção didática para piano e a Sonata Breve (1947). A produção de obras para orquestra sugere um interesse maior, por parte do compositor, em divulgar sua obra em turnês na Europa e nos Estados Unidos, tendo em vista que suas peças para orquestra já estavam sendo regidas no exterior por maestros como Villa-Lobos e Toscanini. Do ponto de vista da linguagem musical, Lorenzo Fernândez explorava novos processos de composição mesclando formas tradicionais com estéticas harmônicas, até então pouco utilizadas por ele.

Lorenzo Fernândez foi um dos poucos compositores brasileiros que se preocupou incansavelmente com o ensino e com a formação básica em música — tendência que caracterizou compositores-educadores de seu tempo como Villa-Lobos, Kodaly, Bartok, Koellreutter e, mais recentemente, Schaeffer, Paynter, entre outros. Como exemplo desta atuação de Lorenzo Fernandez, citamos o Conservatório Brasileiro de Música, instituição fundada por ele com fins pedagógicos e o Conservatório Nacional de Canto Orfeônico, projeto de musicalização que ambicionava atender todo o território brasileiro, coordenado em parceria com Villa-Lobos. Então, sua visão se voltou para divulgar internacionalmente, de forma mais intensa, seu legado artístico, pois é de fundamental importância a participação do compositor na divulgação pessoal de sua obra. No entanto, seu falecimento precoce abortou este desejo impedindo sua dedicação a este trabalho de expandir o conhecimento de sua produção artística e poética. Tal desejo foi levado adiante pelas mãos de alguns importantes intérpretes, mas, sobretudo, de familiares, como sua viúva Irene Soto Lorenzo Fernândez, sua filha Marina Lorenzo Fernândez Silva e sua neta, a professora e maestrina Antonieta Silva e Silvério responsáveis por sua obra a partir de então.

A ideia de editar e disponibilizar toda a obra do compositor partiu de sua filha Marina Helena Lorenzo Fernândez Silva. Após décadas de dedicação ao legado do pai no campo do ensino musical tanto em Minas Gerais quanto no Rio de Janeiro, Dona Marina, à época no alto dos seus 86 anos optou por essa atitude pioneira no país: abrir mão de todos os direitos autorais e procurar rescindir, na medida do possível, todos os contratos ainda vigentes com editoras para disponibilizar gratuitamente, via internet, a obra do pai. Isso sem qualquer tipo de patrocínio, sem apoio algum e contando apenas com a garra e a força de vontade que lhe é característica. Dona Marina fez apenas uma exigência: que todo o Projeto fosse coordenado por sua filha Antonieta e por mim, pessoas com um longo e forte vínculo afetivo com a obra de Oscar Lorenzo Fernândez. Dona Marina queria, ainda, que fosse dada prioridade à obra didática para piano, muito utilizada em programas curriculares de conservatórios, escolas de música e universidades no Brasil.

Quando iniciei meus estudos de música no Conservatório Estadual de Música Lorenzo Fernândez, instituição fundada na cidade de Montes Claros (MG) por Marina Helena Lorenzo Fernândez Silva, chamou minha atenção a ausência de partituras de Oscar Lorenzo Fernândez, em especial, suas obras para violão e música de câmara. As transcrições de algumas peças de suas suites de piano para o violão, editadas pela Casa Irmãos Vitale, representam, no Brasil, uma produção pioneira da escrita para violão. O mesmo podemos dizer em relação à Suite para Instrumentos de Sopro também pioneira no gênero. As aulas de piano utilizavam fartamente as obras do patrono do Conservatório, principalmente aquelas voltadas para a iniciação ao instrumento. Na maioria das vezes, os alunos faziam uso de cópias xerocadas à exaustão, nas quais mal se podiam perceber as nuances interpretativas indicadas pelo compositor devido à péssima qualidade da reprodução. Nesse sentido, o Projeto Lorenzo Fernândez Digital pretende contribuir com a divulgação da obra do compositor tornando acessível suas partituras de forma gratuita e online.

Após o convite de Dona Marina, Antonieta e eu iniciamos um sistemático trabalho de pesquisa buscando obras e contratos assinados por Lorenzo Fernândez e/ou sua viúva com editoras no Brasil e no exterior. O auxílio do advogado Rafael Lorenzo-Fernandez Koatz (bisneto do compositor) foi fundamental nesse processo, além da posterior parceria com a Editora Irmãos Vitale, detentora de parte significativa da obra.

A pesquisa e o processo de editoração

As partituras foram reunidas através de pesquisas no acervo particular de Antonieta Silva e Silvério e de Marcos Filho, na Biblioteca do Conservatório Brasileiro de Música (CBM), na Biblioteca da UFMG e, principalmente, na Biblioteca Nacional (RJ), responsável pela guarda de manuscritos doados pela família e admiradores.

Tem sido fundamental para a execução do Projeto o apoio do Sesc Partituras, projeto de inciativa do Sesc Nacional sediado no Rio de Janeiro e comandado por Sylvia Letícia e Thiago Sias. O Sesc Partituras custeia o processo de digitação das obras em software de edição de partituras. O restante do projeto, como a criação, desenvolvimento e hospedagem do site e os gastos com revisões das obras são custeados pela família do compositor.

Convidamos os editores Romeu Rabello e Simonne Fonseca para assumir a responsabilidade pela digitação e edição da obra no software Finale. Acreditamos que, desta forma, a experiência e competência dos referidos editores garantiram um padrão de qualidade para o trabalho, além de criar uma sintonia maior com os detalhes da obra e do trato com a escrita do compositor. Tais fatores foram decisivos para dar coerência à revisão e unidade ao conjunto da obra de Lorenzo Fernandez.

Cada composição passa por um processo rigoroso de revisão organizado em 6 etapas. Cada etapa consiste essencialmente em uma constante troca de informações entre revisores e editores. Após copiadas e formatadas, as obras passam por uma revisão inicial de notas, articulações e indicações de expressão por parte dos revisores. Essa revisão retorna para os editores que devolvem as correções. Na sequência, tem-se uma segunda rodada de revisão e envio para os editores até a conclusão do processo, quando a edição final é enviada para o banco de dados do Sesc e, posteriormente, incluída no site.

No processo de revisão, buscamos ser fiéis, na medida do possível, às indicações de expressão, técnica e divisão rítmica escritas pelo compositor. Desta maneira, tentamos evitar prejuízos para intérpretes que queiram ousar em performances contemporâneas sem, contudo, deixar de preservar os contrastes entre as diversas estéticas que influenciaram o compositor, além do marcante traço de modernidade presente na sua escrita. Muitas das indicações de expressão e tempo indicam a própria dicotomia do período: de um lado a tradição que recomenda o uso de termos em italiano e, de outro, a constante busca nacionalista pela afirmação da brasilidade. Ainda nesse sentido, buscamos atualizar as transposições e os nomes dos instrumentos para a prática atual.

O editor e músico Romeu Rabello criou um sistema para codificar cada obra, exibido nas respectivas partituras. Esse sistema não visa substituir a numeração convencional “Opus”, feita em grande parte pelo próprio compositor. O objetivo é controlar as novas edições através de uma numeração que identifica a obra em relação à sua categoria e também sirva de referência para futuras reedições e/ou correções. O código LF (Lorenzo Fernândez) segue uma numeração simples de acordo com um Catálogo de Obras do compositor produzido a partir de dois outros catálogos anteriores (1962 e 1992).

Para entender como é formado o código, tomemos, como exemplo, o código LF 2.26a. O algarismo inicial (2) antes do ponto, indica a categoria da obra, neste caso uma peça para canto com acompanhamento de pequena orquestra; o número seguinte (26) indica a posição da peça na sequencia cronológica do catálogo; a letra “a” indica que se trata da primeira edição online (as reedições seguintes ou correções ganham letras por ordem alfabética). A sequencia básica de numeração é:

– LF 1. Obras para canto com acompanhamento de piano;
– LF 2. Obras para canto com acompanhamento de orquestra e/ou pequeno conjunto;
– LF 3. Obras para coro a capella, para coro com acompanhamento de piano, órgão ou orquestra;
– LF 4. Obras camerísticas – duos, trios, quartetos e quintetos;
– LF 5. Obras operísticas;
– LF 6. Obras para orquestra;
– LF 7. Obras para orquestra e instrumentos solistas;
– LF 8. Obras para piano solo, a dois pianos e à quatro mãos, e
– LF 9. Obras para violão.

O Projeto está na fase inicial e ainda são muitos os desafios até sua consolidação. Cada obra a ser revisada e cada novo documento encontrado e disponibilizado pelo Projeto oferece novas possibilidades de pesquisa que se abrem na busca incessante por uma compreensão da produção de Oscar Lorenzo Fernândez.

Convidamos a todos a contribuírem e compartilharem conosco essa instigante e afetuosa aventura!